A cultura nunca é neutra, e os espaços que habitamos também não o são. Desde os bairros urbanos às zonas rurais, das fronteiras geográficas aos territórios digitais, os lugares que ocupamos condicionam e são condicionados pelas práticas culturais. A relação entre espaço e cultura é um dos temas mais férteis das ciências sociais contemporâneas, pois ajuda a compreender como se constroem identidades, como se manifestam desigualdades e como os indivíduos negociam simbolicamente a sua presença no mundo.
O espaço como construção cultural
Ao contrário da visão tradicional do espaço como um cenário fixo, as abordagens culturais contemporâneas tendem a vê-lo como uma realidade construída socialmente. Isto significa que os lugares não têm apenas uma dimensão física, mas também simbólica: são investidos de significados, memórias, afetos e disputas.
O conceito de espaço social, proposto por Henri Lefebvre, é fundamental neste contexto. Para o autor, o espaço é produzido pelas relações sociais e pelas práticas quotidianas. Uma praça, por exemplo, não é apenas um conjunto de bancos e calçada; é o lugar onde se encontram vizinhos, onde se realiza o mercado, onde ocorrem protestos — onde se vive a cidade.
Neste sentido, cada espaço é também um território de identidade. Os habitantes atribuem sentidos aos lugares, constroem uma ideia de pertença, de memória coletiva e até de resistência. Quando um bairro é alvo de gentrificação, por exemplo, não está apenas a mudar fisicamente — está a ser substituído simbolicamente, com a expulsão de práticas culturais que ali existiam.
Cultura urbana e apropriação do espaço
As cidades são o palco privilegiado desta disputa simbólica. Os espaços urbanos concentram múltiplas culturas, classes sociais, etnias e estilos de vida. Essa diversidade dá origem a práticas culturais únicas — por vezes efémeras, por vezes enraizadas — que expressam a relação entre o indivíduo e o espaço.
O graffiti, a dança de rua, o hip hop, os mercados informais ou os festivais alternativos são formas de apropriação cultural do espaço urbano. São práticas que, muitas vezes, nascem nas margens sociais e se afirmam como expressões de identidade, de resistência e de criatividade.
Michel de Certeau, em A Invenção do Cotidiano, propõe o conceito de táticas para descrever como as pessoas comuns subvertem os usos normativos do espaço. Ao desviar-se do caminho “esperado”, ao utilizar uma praça para algo imprevisto, o cidadão transforma o espaço em algo seu. Esta capacidade de reinventar o espaço através da cultura está presente tanto na grande metrópole como na pequena vila.
O espaço rural como território simbólico
Se o urbano é muitas vezes associado à inovação e à velocidade, o espaço rural é geralmente conotado com tradição, continuidade e pertença. Esta visão, no entanto, é também uma construção cultural — e nem sempre corresponde à realidade vivida.
Os espaços rurais não são apenas cenários de práticas “folclóricas”. São territórios de memória viva, onde os modos de vida, os rituais agrícolas, as festas locais ou os saberes transmitidos oralmente constroem uma cultura densa e resiliente. Ao mesmo tempo, também estes espaços estão sujeitos a dinâmicas de despovoamento, turistificação ou transformação económica, o que altera as relações simbólicas com o território.
A cultura rural pode também ser de resistência. Em muitas regiões, manter um modo de vida agrícola, uma língua regional ou uma festa tradicional é uma forma de afirmar uma identidade contra a homogeneização cultural.
“Não-lugares” e espaços do vazio simbólico
O antropólogo Marc Augé introduziu o conceito de não-lugares para descrever espaços da modernidade tardia que, embora funcionais, carecem de identidade, história e relações. Exemplo disso são os aeroportos, os centros comerciais, as autoestradas ou os hotéis de cadeia internacional.
Nestes espaços, a experiência é marcada pela anulação da diferença cultural: tudo parece igual em qualquer parte do mundo. Para Augé, trata-se de lugares de passagem, de anonimato e de consumo, onde o indivíduo é reduzido a utilizador, passageiro ou cliente.
No entanto, também aqui há margem para a criação cultural. A cultura global contemporânea apropria-se desses espaços — através da arte, da crítica ou da ironia — e transforma-os em objetos de reflexão. O que antes era vazio simbólico pode tornar-se, através da cultura, um espelho da condição humana na era da globalização.
Territórios digitais: novos espaços culturais
Com a digitalização da vida social, surgem novas formas de espaço — não físicos, mas ainda assim estruturantes da experiência cultural. As redes sociais, os fóruns, os mundos virtuais ou até as plataformas educativas são hoje territórios de criação de sentido, pertença e identidade.
A cultura digital não elimina a importância do espaço físico, mas complexifica a geografia da experiência cultural. Um jovem pode viver numa aldeia do interior, mas participar diariamente numa comunidade global de fãs de anime. Um ativista pode organizar protestos locais a partir de uma rede digital transnacional.
Estes territórios híbridos — entre o físico e o virtual — são também espaço de disputa: pelo controlo da informação, pela visibilidade, pela afirmação de vozes minoritárias ou marginalizadas. São, portanto, novos campos simbólicos da cultura contemporânea.
Conclusão: pensar o espaço como cultura
Refletir sobre a relação entre cultura e espaço é reconhecer que os lugares não são neutros, nem universais. Cada espaço é um campo simbólico onde se inscrevem memórias, práticas, conflitos e afetos. Compreender essa dimensão é essencial para interpretar as dinâmicas sociais, as lutas identitárias e os desafios de um mundo em constante transformação.
Num tempo em que se discutem cada vez mais as questões de território, pertença e deslocamento — seja por motivos económicos, ecológicos ou políticos — pensar o espaço como fenómeno cultural torna-se mais urgente do que nunca.
(1) imagem disponível em: https://pixnio.com/pt/interior-exterior/exterior/graffiti-arte-rua-parede-arquitetura-urbana-velha acesso em 09 de Julho, 2025 – S/ título – João Pacheco
Bibliografia:
Lefebvre, H. (1991). The production of space (D. Nicholson-Smith, Trans.). Blackwell. (Original work published 1974)
Certeau, M. de. (1984). The practice of everyday life (S. Rendall, Trans.). University of California Press. (Original work published 1980)
Augé, M. (1995). Non-places: Introduction to an anthropology of supermodernity (J. Howe, Trans.). Verso. (Original work published 1992)
Santos, M. (2006). Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record.
Tuan, Y.-F. (1977). Space and place: The perspective of experience. University of Minnesota Press.